por João Gomes___
Recordo
a primeira vez que tive acesso, por meio do YouTube, com o trabalho
de Liniker. Ao primeiro contato senti medo daquele estilo tão
potente, capaz de desestruturar o turbilhão de significados contidos
em sua maneira suave e poética de dizer as coisas com uma sintonia
estarrecedora. Fui inteiramente abduzido. Tudo ali, inclusive o grupo
Os Caramelows, era dado em fatias no momento certo, e nada sobrava.
Ora com um vozeirão no estilo Tim Maia, ora com uma voz suave, às
vezes rouca e às vezes grave, suas canções, como sugere o título
do seu primeiro disco, Remonta (2016) o amor e suas raízes. É
realmente de se tombar, e tombar o preconceito.
Seu
EP de estreia, Cru (2015), foi gravado ao vivo para imprimir a
força do momento de natureza íntima, e realizado de forma
colaborativa através da plataforma Catarse. Em uma semana, um dos
vídeos gravados chegava a um milhão de visualizações, e uníssono
e eternamente os internautas agradecem que a black music de
seu estilo tenha adentrado na nova música brasileira, fazendo muitos
se gostarem ainda mais, por meio de tanta identificação. Música de
ou sem qualidade vicia, e quando possui autonomia e referências que
transcendem, já viu aonde pode chegar. E tudo isso sem ambição,
somente para empoderar sua existência, seu direito de estar e fazer
o que bem desejar, embora carinhosamente já seja chamada de deusa
pelos fãs.
Divulgação |
Com
formação cultural do samba ao soul, Liniker de Barros Ferreira
Campos, ou simplesmente Liniker, cujo nome é uma homenagem ao
futebolista inglês Gary Lineker, vem de uma família de músicos
profissionais da cidade de Araraquara, interior de São Paulo.
Performático em todos os sentidos, tendo primeiro estudado teatro na
Escola Livre de Teatro de Santo André na adolescência com o desejo
de desenvolver seu visual não-binário, inicialmente se apresentava
com uma mistura de turbante, saia, argolas, batom e bigode. Mas
sabemos que Liniker é muito mais que isso, e não alguém que deseja
apenas chocar. Em entrevista ao EL PAÍS, questiona: “Por que
colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só
com a voz? Meu corpo é um corpo político.”
Mesmo
muito jovem (nascido, pasmem, em 1995), através de suas referências
sentimos o quanto é orgânico e clássico o seu trabalho, tendo uma
força capaz de se inserir em qualquer público liberto. Tássia
Reis, Tulipa Ruiz, Clube do Balanço, da música brasileira atual,
Nina Simone, Etta James, Beyoncé, Mariah Carey, Caetano, Gil, Gal e
Cartola são as referências e o que ouve Liniker. Com o apoio do
público internauta, seu começo viralizou e fez sua carreira virar
da noite para o dia. Mas nada veio pronto, suas composições vêm
desde os 16 anos, cartas que não tinha coragem de enviar aos garotos
que desejava ter algo, quando agora nos embala os corações como
salvação da nossa música nacional. Tamanha a força, sente-se que
veio para permanecer.
Para
que o público idolatre um artista, nem sempre seu trabalho precisa
ser consistente. Chocar, ou simplesmente lacrar, tombar, também
qualquer um pode ter esse desejo maior e vir a realizá-lo,
esquecendo outros requisitos, ou não tendo como interferir nisso,
por mais que faça parcerias para alavancar mais ainda o efêmero
sucesso na mídia. Liniker começou por baixo, o mais baixo átrio de
nossos corações, com o sucesso Zero, onde entoa o seu
autobiográfico “Peguei até o que era mais normal de nós / E
coube tudo na malinha de mão do meu coração” para cantar uma
sofrência tão comum quando em questão de amor “A gente fica
mordido, não fica?”, e bem mais ainda quando esta mesma canção
já ultrapassa os 22 milhões de visualizações. Podem até dizer
que sofrência é o que vende, depois do cantor baiano Pablo, ou da
drag e cantora Pabllo Vittar e, mais recente e com mais apuro
estético, a recifense Duda Beat que também estourou com o álbum
Sinto muito.
A
autonomia de opinar foi dada a todos após o surgimento da redes
sociais, mas só o de opinar, ser diferente 24h e independente não,
ainda é visto como doença, palhaçada, vontade de aparecer,
oportunismo. Felizmente Liniker nunca sofreu agressões físicas por
ser o que é, esse cruzamento entre o masculino e feminino, um ser
não binário, isto é, fora do contexto limitador que conhecemos
biologicamente. Mas ultrapassar todos esses gêneros, e com um
talento tão arrasador, não é para muitos por mais que queiram.
Para alguns, Liniker não precisava de nada além da voz, sendo todo
o resto apelatório e descabido, isso como se estivéssemos na era do
rádio e não da imagem. Ainda para isso da apelação, citemos Nego
do Borel no seu clipe Me solta, onde sempre travestido beija
outro homem para ultrapassar no momento os 140 milhões de
visualizações de uma música pensada somente para baile funk. No
mesmo vídeo, alguém alfineta: “Critica o cara, mas no Carnaval
sai vestido de mulher e se amarra.” Quando é para a minha alegria,
pode, não é errado, mas se o outro ultrapassa o mês da folia, é
doença e apelação.
A
cantora Liniker, como prefere ser chamada, no feminino, já saiu das
fronteiras brasileiras, chegando recentemente a participar do Tiny
Desk Concert produzido pela NPR Music, rádio de titularidade pública
e sem fins lucrativos do EUA. Em tradução livre, sobre o concerto
de Liniker e os Caramelows, escreveram na descrição do vídeo:
“Assistir a esta performance é testemunhar
um feitiço sendo lançado, nota por nota. [...] Você tem que voltar
para a mistura de jazz e música brasileira no final dos anos 50 para
apreciar a afinidade que nossos dois países tiveram um pelo outro
musicalmente.” Também anteriormente esteve na TV portuguesa RTP,
fazendo todos os apresentadores dançarem com uma composição que
parte da sofrência para o amor propriamente de alguém-ele-mesmo que
é chamada de Tua.
Aí está uma troca positiva entre as nações, de caráter cultural
e não ideológico, de riqueza cultural e não de bestialidade
fascista.
Liniker
sem nenhuma afetação é brasileiríssima, com uma identidade
própria, dona de um trabalho visceral e sobre ser ele ou ela
responde: “Quando me questionam sobre gênero, eu falo que eu não
sei quem eu sou e eu acho que é importante viver essa dúvida
também. Eu não preciso ter uma certeza de ‘sou homem’ ou ‘sou
mulher’, meu corpo é livre, meu corpo é um corpo político, ele
merece a liberdade dele e eu preciso caminhar com isso, aceitar que
eu sou assim”, disse em entrevista ao G1. É para isso que se luta,
para empoderar e sair do “menina veste rosa e menino veste azul”
que não acrescenta nada na evolução humana, pelo contrário,
resume e encerra junto com o fascismo todas as problemáticas de
nosso tempo.