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por Taciana Oliveira__


                                                                            Fotografia:Nazym Jumadilova


 PRINCIPADO EXTINTO

 

Isto é um poema

fala de amor

ou do medo do amor

Fala da morte

ou do fim da amálgama

rosto voz alma e cheiro

que é a morte

Isto é um poema

tenha medo

Fala dos peregrinos

que atravessam avenidas

de sobretudo e óculos

carregando flores invisíveis

e chorando mudos

Isto aqui é um poema

fala da permanência inútil

de um coração devastado

de uma floresta devastada

de uma corrida devastada

logo depois do disparo

da arma de 40 peças

que soltou a bandeirinha

e assim mesmo se desfez

Isto é um poema

fala da aparição do inverno

fala da fuga dos albatrozes


fala do punhal sobre a mesa

e do absurdo do punhal

feito de madeira e pedra

sobre a mesa do jantar

Fala do poder da erosão

que afinal incide sobre

pele e nervo e osso e olho

Fala do desaparecimento

Fala do desaparecimento

Claro que é um poema

fala do toque de saída

 no colégio de Île de France

e das 39 saias das meninas

esvoaçando sem vontade

na direção do cais de ferro

Fala do pânico do corpo

que esbarra em si mesmo

no espelho pela manhã

e do urro silencioso

que nenhum vizinho

escuta mas que ainda

assim reverbera sem dó

até a hora final

fala do vômito que advém

dos gestos repetidos


prolongados assim ad astra

até que o sono apague tudo

Fala da palavra saudade

ou da palavra terremoto

fala do olho que tudo via

deixando lentamente de ver

até mesmo a cara de Jack Steam

o porteiro da loja de discos

onde toca a canção de Chavela

Nada mais no mundo importa

Isto é que é poema

Fala do cheiro das flores

e da injustiça da existência

das flores na cidade

Fala da dor excruciante

meu bem excruciante

que faz até desejar

o fim do poema

o fim da palavra amor

que após o disparo

se espelha apenas

na palavra loucura.


ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR

 

Lembro-me muito bem do tal cantor basco

que costumava celebrar a chuva no verão

Não ligava quase nada para as conspirações

que recorrentemente se faziam ouvir

debaixo das arcadas noturnas da cidade

naquela época do intermezzo lunar

Foi já depois do fascismo, um pouco antes

da democracia enfaixada em magnólias

O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos

me ensinaram que se deve aproveitar a época

de transição para destrinçar o brilho

As revoluções sempre foram o lugar certo

para a descoberta do sossego:

talvez porque nenhuma casa é segura

talvez porque nenhum corpo é seguro

ou talvez porque depois de encarar uma arma

finalmente seja possível entender

as múltiplas possibilidades de uma arma.


Matilde Campilho


*poemas do livro Jóquei (Editora 34, 2014)








Matilde Campilho (Lisboa, 20 de dezembro de 1982) é uma escritora portuguesa. Publicou Jóquei (2014) pela Editora Tinta-da-China, reeditado pela Editora 34 em 2015 e Flecha, Editora Tinta-da-China (2020).







Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga.  Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…