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Por Taciana Oliveira__
O plaquete Cronotanatognose, um poema de Suyane Spinosa, é a nossa publicação de hoje da seção Prelo. O arquivo está disponível para download no site do Internet Archive. Curadoria de Lisiane Forte e Taciana Oliveira .







#PoesiaBrasileira  #LiteraturaFortaleza  #SuyaneSpinosa


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Suyane Spinosa é fortalezense, possui formação em sociologia e audiovisual. Se interessa por música, filmes, fotos antigas, sonhos e desenhos.


por Adriano B. Espíndola Santos__

Fotografia: Lukas Bornhauser


Sustos graves, sequenciados, e, pronto, a carga emocional; e o medo no tracejar da vida. Menino Fernando precisava arranjar um jeito de se proteger da inexorável perturbação. Esse seu coraçãozinho, próprio de um passarinho, poderia não vingar: são.

Pois bem; vê-se uma aparente normalidade naquela casa de muros amarelos – porta afora. Fachada linda, pintada. Portões de alumínio, concordes à última moda. Um diplomata comodoro na garagem – o único, talvez, a ostentar, num raio de cem quilômetros, um toca-fitas com uma minúscula televisão. Amélia, uma amiga de mamãe, conjeturou vaga: “Amiga, que casa linda; que família maravilhosa! Benza Deus!”. Arrebatada pela superfície da beleza.
Não seja leviano, rapaz, não foi tão horroroso assim”. “Que exagero!".  A atroz consciência me condena. A inconsciência, o escape, por vezes me surpreende. O receio. O medo de ser injusto. Mas as pessoas não ouviram; não sentiram… Quem foi capaz de apartar de mim as brigas, os gritos, os estrondos monumentais? Como, pequeno, entender e digerir tudo; todo aquele peso adulto? Menino Fernando, tão franzino, quieto, calado, passivo, ingênuo: menino.

Agora, não devo me afobar tanto. É tempo de afinar as ideias; apurar desejos, sonhos. É estratégia de remição, aproveitar a proposta crível da transmutação, para me curar por ti, menino Fernando. Ouça-me. Ajude-me. Somos um.
Quando minha mãe arrebentou Iracilda na porrada, o meu ímpeto foi por sua defesa. Ainda que não fosse tão afeito à sua figura grotesca, passávamos horas e horas, eu e meu irmão, sob seus cuidados. Havia, claro, um sentimento ínfimo (de medo): “Se ela for embora, quem vai cuidar de mim quando mamãe não estiver?”.

Não sobrou tempo para tomar pé da situação. A mulher saiu escorraçada. “Quis seduzir seu pai; aliciá-lo, para se apartar de nós e arrumar uma nova família!”, mamãe vociferava. “Aquela cachorra quer que ele a sustente!”. Rondava a conversa que, de fato, papai preparava as malas; que, pouco a pouco, ia deixando coisas suas em Pacajus, para, prontamente, se mudar em definitivo. O calvário. O martírio. O espezinhar mórbido, renitente, impassível.
O rinoceronte irrompeu a paz, ao adentrar a casa, naquele fatídico dia. Bêbado, reclamou a presença de Iracilda, após um fim de semana incógnito. Não havia celular. O isolamento programado, desleixado, completo.

A convulsão o seguia. Mamãe aos prantos, porque o rinoceronte queria sumir de vez. Dessa parte só tive notícia. Eu dormia, às duas da manhã. Mas mamãe me acordou, desesperada: “Corra! Seu pai quer ir embora! Peça, pelo amor de Deus, para ele não ir!”. Um loop infinito: pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus. Uma dízima periódica, que dizimou o raso nirvana que se projetava em mim. Aos seus pés, quase em oração: “Pai, ‘pelo amor de Deus’, não vai embora! Pai, ‘pelo amor de Deus’, não deixa a gente aqui!”.

Chorava. Retorcia-me. Escondia-me nos profundos da casa. Sem saber o porquê daquilo tudo. Uma dor que ia e vinha, quando menos se esperava. Quando menos se espera.
A primeira vez. O rinoceronte não se foi, por mim. Senti-me fio frágil de uma suposta estabilidade.

Repetidas vezes, quando o rinoceronte se encantava com o mundo selvagem, lá ia eu, o pequeno redentor, que o tragava do fosso da perdição, agarrá-lo e suplicar: “Pelo amor de Deus!”. Depois (ufa!), a religião me substituiu nessa tarefa dolorosa – para o bem ou para o mal, abandonei a obrigação.

A bigorna me deixava circunspecto ao lugar e, por isso, me liberava na fantasia.

Louvo me derramar pela arte, com a boa vontade da posteridade para me aturar. Pois que, de outro modo, não poderia me desvencilhar dos vestígios do mau que me sucedeu.

Como Freud, meu refúgio e minha salvação é a literatura; a elucidação de minhas mais intricadas proposições; a chave de acesso e de conexão ao universo inconsciente, com dois trilhões de galáxias inexploradas em mim.

Caro menino Fernando. Muito caro. Caríssima a liberdade. Inalienável.

Enfim, sigamos, não é o fim.

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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata, Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Poesia Avulsa, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.