por Alessandro Caldeira __

"Man in the Rain at Night", 2009 - Ignace Kennis.


Por Mô Ribeiro __


Meu nome é Bárbara, e sou louca. Por favor, não espalhem. Ninguém sabe. Só eu mesma. As pessoas me têm como uma mulher calma, controlada, bastante discreta. Aqueles que convivem comigo dizem que sou o modelo do autocontrole, da lucidez. Fico feliz por conseguir ludibriar a quase totalidade humana que insiste em acreditar no óbvio.
Afinal, penso que sou, sim, muito louca, e a capacidade de disfarçar este meu lado obscuro certamente me protege. Parece contraditório alguém saber da própria loucura? Talvez. Mas o que passa por minha cabeça, associado ao que já li a respeito de transtornos mentais, consegue me convencer de que sou, sim, amalucada.
Todos os dias uma ou mais alucinações me ocorrem, e sei que são ilusões. Ao mesmo tempo sei que são verdadeiras, pois vejo com nitidez, ou melhor, vivo com nitidez acontecimentos completamente distantes do meu dia-a-dia.
Pensando bem, ainda não estou totalmente certa de minha loucura. O que me faz pensar que sou insana? A discrepância entre certos episódios de minha vida e meu "pão nosso de cada dia". Há também o fato de que os acontecimentos pouco corriqueiros só se dão quando estou só.
O que me faz pensar que sou sã? A suposição de que talvez a vida tenha eventos mágicos afinal de contas. Pode ser que tais situações sejam tímidas a ponto de só se darem na minha solidão. Bem, ainda não sei. E acho que jamais saberei.
Quando estou só, pessoas me visitam. Dizem que se identificaram na portaria, mas o porteiro nunca as vê. Serei eu a louca ou louco será o porteiro? Aí está o mistério. Bom, ele é dorminhoco, e talvez as pessoas tenham vergonha de acordá-lo: eis a solução prosaica.
Vamos à solução complexa: eu nunca sei em que situação conheci meus visitantes, embora sempre os reconheça. Basta um primeiro encontro para que eu saiba quase sempre, sem que abram a boca, seus nomes, o que fazem, de onde são.
Sei como fazem sexo, o que gostam de comer, que vida tiveram. Às vezes consigo saber até que vida terão. Mas nem sempre sei onde os vi pela primeira vez. Talvez aí resida o álibi do porteiro na defesa de sua sanidade, de sua vigília, álibi fornecido por meu desconhecimento do momento em que travei conhecimento com meus amigos.
Eles - os misteriosos seres - vêm todo dia a minha casa. Com alguns faço sexo, com outros converso, com alguns outros choro, uns poucos conforto, por muitos sou confortada. Às vezes ocorrem brigas, a maioria sem motivo. Todos me preparam lautas refeições e eu devoro a comida como se estivesse prestes a viver meses de penúria. E mesmo assim não engordo. Sou magra, muito magra.
Faço sexo sem proteção e não engravido nem adoeço. Talvez sejam mesmo pessoas imaginárias, comida imaginária, sexo imaginário.
Nunca se despedem de mim. Sempre esperam que eu adormeça e vão embora sem que eu perceba. No dia seguinte acordo, lembro-me da visita mas, como as obrigações são um fato, tomo banho e vou para o trabalho como se nada houvesse acontecido.
Ninguém jamais soube disso até este momento. O porteiro me olha com estranheza sempre que pergunto sobre alguém que tenha chegado para me ver mas, simplório que é, não faz questão de tentar entender o que me ocorre. E assim vou vivendo. Simplório o porteiro? Me é mais confortável pensar assim.
Às vezes é muito bom ter a chance desses delírios, desses sonhos despertos. Outras vezes é assustador. Por causa da violência de certos visitantes? Também. Mas sobretudo pela angústia de jamais saber qual é a verdade, de quem é o delírio, se há o delírio.
A visita de ontem foi muito boa. Tem os mesmos 33 anos que eu. Mais: nasceu no mesmo dia e no mesmo horário em que vim ao mundo. Não é a primeira vez que me procura. Às vezes some por longos períodos, mas quando resolve aparecer - ou será que eu resolvo fazer com que apareça? - sinto uma imensa felicidade.
Sempre que vem conversamos, fazemos sexo e, quase no fim da madrugada, jantamos. Ele cozinha divinamente e, inevitavelmente, me prepara algum tipo de massa. Sabe que adoro massas. Gostaria que um dia ele ficasse comigo até o amanhecer, mas isso nunca aconteceu.
Talvez seja mesmo um delírio. Às vezes me chateio com essa possibilidade, mas outras vezes me alegro. E a possibilidade da loucura acaba sendo compensadora.

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Mônica Ribeiro, ou Mô Ribeiro, é mineira de Belo Horizonte. Arquiteta de formação, descobriu-se poeta por insistência do inconsciente. Participou da antologia É Urgente o Amor, Edições Vieira da Silva, Portugal, e também da Antologia Ruínas, da Editora Patuá. Foi publicada pelas revistas Caliban, Germina, Literatura & Fechadura, Mallarmargens e Revista de Ouro. Irá publicar seu primeiro livros de poemas, Paganíssima Trindade, pela Editora PenaluxVeio ao mundo em 1971 e deu trabalho para vir à tona: o parto foi de fórceps. A escrita, ao contrário, vem nas contrações que dão à luz seus poemas. Partos rápidos, mas não sem dor, e depois o cuidado com a cria. Assim é sua escrita.

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por Taciana Oliveira__



por Taciana Oliveira___


por Adriane Garcia___


Por Adriane Garcia__

Segundo Paul Ricoeura imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.” Há um “pequeno milagre”, como chama Ricoeur, no reconhecimento de algo que, não estando mais lá, é reconhecido como tendo estado.
O livro Fabulário (ed. Confraria do Vento), de Ana Santos, divide-se em três partes: Museu mínimo, Microcosmo e Fabulário. As três partes dialogam entre si, dando unidade ao livro. Seu centro é a memória como motor para a narrativa. Já em Museu mínimo fica clara a composição a partir do memorial que a poeta traz, um museu da infância – esse lugar privilegiado da memória; pois a infância se aproxima dos contos de fada para o bem e para o mal naquilo que traz de tragédia e mágica.
É pela memória que Ana Santos cria as imagens de Fabulário, buscando um elo entre passado e presente. A forma encontra o tema, já que as fábulas e os contos de fada trazem um arcabouço da memória coletiva. Se a lembrança da poeta é uma experiência individual, ao transformar essa lembrança em poesia ela seleciona aquilo que pode dialogar com o outro, na sua também experiência individual; experiências únicas, mas que se encontrando podem se reconhecer, traduzindo valores, sentimentos e sensações universais. No poema Retrato de família, por exemplo, a poeta escreve como quem pinta. O poema é uma verdadeira composição e o leitor, ao ver o retrato, pensa nos próprios retratos de família que poderia pintar. Para além das descrições, na sexta estrofe, há um susto comum a todas as pessoas – é a constatação da finitude, da perda:
(Se alguém escavasse
o quintal da infância, acharia ossos
de aves e cães, uns brinquedos
terrosos, o corpo desfeito
de um fantoche antigo.)

Para além da beleza, versos exatos, Ana Santos trabalha com uma variação criativa de poemas, tanto de elementos quanto de forma. Sua memória, a princípio pessoal, é também memória crítica, cultural, coletiva. Ao contrário do que poderia facilmente acontecer com um livro cuja matéria prima é a lembrança (ser apenas solitário), Fabulário é solidário, e lança o olhar que da imagem interior vai ao outro. No poema Curtas, as fábulas atualizam, como rápidas cenas cinematográficas, a dor da maternidade confrontada com a morte: Maria canta/ e embala/ o corpo quente. Do seu menino. // O corpo esfria: // Maria / canta mais alto.”
Em Fabulário, encontramos seres e objetos comuns ao imaginário geral. Ana Santos os reorganiza de maneira a dar sentido para os fragmentos, afinal, não é possível acessar o passado completamente tal qual tenha sido. A memória, sendo seletiva, está sempre sob suspeita, e mesmo com aqueles que partilhamos as mesmas histórias, há divergências na narrativa. É que a experiência é única e intransferível e está subordinada ao tempo e às perspectivas de cada um. Ainda que o caráter individual da lembrança seja inegável, também é inegável que a memória se constrói em teia de relações sociais. Fabulário traz histórias reais que perambularam pelo mundo, fábulas que se parecem com o comum dos dias, mas que a poesia eleva ao status de símbolo e metáfora. Alguns poemas falarão da experiência pessoal da poeta, outros daquilo que ela viu, ouviu, pois a própria pessoa é também uma composição de memórias. Há um temor por perder aquilo que nos constitui primordialmente, o risco do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte. Thomas Wolfe, em O menino perdido, escreveu uma frase que vem a calhar: “Tudo se perde a tal ponto que parece nunca ter acontecido... a ponto de ser algo com que sonhamos em algum lugar”. Ana Santos sabe e confessa: “Receio perder a memória. Escrevo por precaução.”

HIBERNAÇÃO

A tia-avó antiquíssima
fez a brusca
revelação:

não era eu
o menino da foto,
tesouro único
da infância.

Era Artur,
o primo achado, uma noite,
calçando patins solares,
na fenda de um lago
congelado.
Os mesmos olhos
grandes e claros.

Não há provas
da criança que fui –
e bem posso
ter sido a outra.

Quem sabe ainda
estou dormindo
naquela floresta azul?

É verão em Varsóvia.
O lago líquido
Guarda meus olhos,
os olhos
do primo Artur.

ORAÇÃO

Meu Deus,
que exista algo
além do vácuo
adivinhado.
Afinal, tudo que amei
será cinza, será pó, será
nada?

Estou no exílio,
em minha tenda
de carne e ossos.
Corto o cabelo,
uso esta máscara
triste:
assim me conhecem.
Guardo as verdades
em relicário –
o que conto são lendas
assombrosas.

Vindo
de onde vim, percorri
obscuros caminhos.
Minha pátria
não tem nome,
meu mapa
é uma flecha em voo.
Eu temo a hora
e a forma
do retorno.

Para que nos matura
o trabalho do tempo?
Para que nos degrada?
Por que esta alegria
gasta em vão?

Que a vida
resista à vida,
polén disperso
na brisa.
Que haja sentido
em nossa
ilusão dividida.
Amém.

TELEGRAMAS
I
FUGI DE TREM ARRANHA-CÉUS COCA E PASTEL FELIZ DEMAIS ADEUS.
BRAÇOS ABERTOS FEIJÃO NO FGO ROSÁRIO E VELA AMÉM.

II
CASA INUNDADA PLEURA INFLAMADA SÓ PÃO MOFADO QUE DEUS ME AJUDE.
VOU PARAR CHUVA VOU PLANTAR TRIGO LEVAR QUEM SABE EXTREMA-UNÇÃO.

III
MARIPOSA MORRE LANTERNA CHINESA SAUDADE QUERO MORRER TAMBÉM.
NA VITROLA TE RECUERDO AMANDA AINDA VIVO NÃO SOU MANUEL.

IV
LIÇÕES TERRÍVEIS SINTAXE ÁLGEBRA NOITE ANO NOVO ESTAREI AÍ.
SORTE NAS PROVAS CHAMPANHA FOGOS MANDINGAS MIL.

V
ESTOU EM HYDRA TOCANDO LIRA ENQUANTO ISSO VOCÊ NO INFERNO.
NÃO SE PREOCUPE CARNE QUEIMADA MAS AH QUE BÁLSAMO NO PEITO.


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Fabulário
Ana Santos
Poesia
Confraria do Vento
2019

Você também pode acessar essa resenha: OS LIVROS QUE EU LI
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Ana Santos nasceu em 1984, em Porto Alegre. É mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela UFRGS. Em 2008, foi contemplada com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística para escrever O que faltava ao peixe (Libretos), livro de contos publicado em 2011 com edição financiada pelo Fumproarte. Em 2017, estreou na poesia com a coletânea Móbile (Patuá), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2018. Com Fabulário (Confraria do Vento, 2019), venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2017, na categoria Poesia.
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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).










por Rebeca Gadelha__ 
Curadoria de Taciana Oliveira


por Taciana Oliveira___


Apresentamos algumas das fotos que foram selecionadas e exibidas na última semana, no projeto ExpoFoto #Quarentena. Estas e outras fotografias estão no Instagram do Perigrafia: @coletivperigrafia 



Por Taciana Oliveira___




por Taciana Oliveira__

por Taciana Oliveira __


por Rebeca Gadelha__
Curadoria Taciana Oliveira



por Quiercles Santana__

Estação São Bento no Porto/Portugal

Rosenbud, as coisas retornam, feito num filme. De algum lugar distante, dentro da gente, arquivos velhos perdidos no HD, elas voltam com força, como se tivessem sido registradas há pouco. Saltam de uma fragrância, de um livro, de uma fotografia rasgada ao meio num momento de fúria.
1. A manhã em que desci na Estação São Bento no Porto/Portugal, levando um espetáculo de teatro que ajudei a parir. Fazia frio e o sol tingia de laranja as fachadas dos prédios antigos. Eu estava feliz que só. Comprei um Henri Miller numa feira de livros usados, ao pé da estação, como eles dizem por lá;
2. 1976. Meu pai desolado com o assassinato de seu irmão Dudé, meu padrinho, em Volta Redonda (nunca mais esqueci esse nome). As pessoas convencendo-o a sair do carro por que só se podia agora lamentar, o mal feito já tinha sido feito. Recostadas no volante, suas mãos trêmulas e a cabeça fervendo de angústia e dor; 
3. A primeira vez que subi no palco de um teatro (1992) com direito a refletores e cortina. Fazia o personagem mais estúpido da “Farsa do Pathelin”. Teatro José Carlos Cavalcanti, no Derby. Minhas pernas tremelicando no escuro da coxia pouco antes de entrar em cena; 
4. Eu com 8 anos. Minha mãe com Vick Vaporub numa noite de tosse e febre alta (sua mão cálida enxugando a minha testa, sua voz mansa dizendo “tudo vai ficar bem, meu amor"); 
5. Minha ex-sogra uma vez no inverno. Eu, molhado da cabeça aos pés, abro a porta da sala, vindo frustrado da rua (tinha passado o dia a procura de trabalho e recebido um não atrás do outro). Ela estava junto ao fogo, mexendo a panela: “meu genro querido, fiz uma sopa adubada… vai ou fica?” Logo depois, debaixo do chuveiro, sentindo um misto de alegria e frustração, entalado, eu choro baixinho, agradecido por não estar sozinho na tormenta. E, em seguida, eu todo animado, rindo alto na mesa, o mesmo cara que chorava há pouco, sorriso de canto a canto (por que a vida pode ser dura, irmão, mas pode ainda assim guardar algum alento. E é preciso aprender a celebrar as vitórias, por mais insignificantes que elas possam parecer, não é isso?).
Entenda. Nada disso diz muito. Mas ao mesmo tempo diz. Ainda não sei bem o porquê, mas me ajudam a entender meu percurso, enquanto atravesso esse confinamento sem fim. Agradeço mais uma vez o seu carinho e sua boa vontade em me ouvir. Força aí na sua quarentena. Estamos juntos.



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Quiercles Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do corpo docente de diversos projetos sociais, a exemplo do Projeto Santo Amaro (da Escola Superior de Educação Física/ESEF-UPE), do Projeto ReVersus (da UFPE), do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI/Projeto Teatro do Oprimido) e do Programa de Animação Cultural (este último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso e Fátima Pontes, na Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife, durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe. Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia, da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de TeatroFoi gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”, filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas, residentes em Recife. É analista de projetos culturais.

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por Taciana Oliveira__