Por Rebeca Gadelha__
Curadoria de Taciana Oliveira
Curadoria de Taciana Oliveira
Esta zine surge da necessidade de movimento e da impossibilidade de continuarmos a ocupar as ruas, muros e repartições com arte, transportamos esta ocupação para o mundo digital. A proposta aqui é trazer a arte de isolamento para isolamento a fim de nos manter conectados não apenas com os outros, mas com nós mesmos. Dito isso, é traremos vários autores e autoras que, com seus versos, prosas, fotografias ou ilustrações nos falem sobre a poesia que (in)existe nesses dias em que quase esquecemos como é estar do lado de fora.
Rebeca Gadelha
Rebeca Gadelha
Para
download acessa: Internet Archive
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Rebeca
Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na
companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista
digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem
medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é
fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e
concepção visual em Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros
(CJA Editora), Coordenação, Designer e ilustrações em
Laudelinas (Editora Nada Estúdio Criativo), participa
da coletânea Paginário,
publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as
revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas
sob o pseudônimo de Jade.
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Taciana
Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do
Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e
literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do
abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
Por João Gomes__
Por
Mô Ribeiro __
Meu
nome é Bárbara, e sou louca. Por favor, não espalhem. Ninguém
sabe. Só eu mesma. As pessoas me têm como uma mulher calma,
controlada, bastante discreta. Aqueles que convivem comigo dizem que
sou o modelo do autocontrole, da lucidez. Fico feliz por conseguir
ludibriar a quase totalidade humana que insiste em acreditar no
óbvio.
Afinal,
penso que sou, sim, muito louca, e a capacidade de disfarçar este
meu lado obscuro certamente me protege. Parece contraditório alguém
saber da própria loucura? Talvez. Mas o que passa por minha cabeça,
associado ao que já li a respeito de transtornos mentais, consegue
me convencer de que sou, sim, amalucada.
Todos
os dias uma ou mais alucinações me ocorrem, e sei que são ilusões.
Ao mesmo tempo sei que são verdadeiras, pois vejo com nitidez, ou
melhor, vivo com nitidez acontecimentos completamente distantes do
meu dia-a-dia.
Pensando
bem, ainda não estou totalmente certa de minha loucura. O que me faz
pensar que sou insana? A discrepância entre certos episódios de
minha vida e meu "pão nosso de cada dia". Há também o
fato de que os acontecimentos pouco corriqueiros só se dão quando
estou só.
O
que me faz pensar que sou sã? A suposição de que talvez a vida
tenha eventos mágicos afinal de contas. Pode ser que tais situações
sejam tímidas a ponto de só se darem na minha solidão. Bem, ainda
não sei. E acho que jamais saberei.
Quando
estou só, pessoas me visitam. Dizem que se identificaram na
portaria, mas o porteiro nunca as vê. Serei eu a louca ou louco será
o porteiro? Aí está o mistério. Bom, ele é dorminhoco, e talvez
as pessoas tenham vergonha de acordá-lo: eis a solução prosaica.
Vamos
à solução complexa: eu nunca sei em que situação conheci meus
visitantes, embora sempre os reconheça. Basta um primeiro encontro
para que eu saiba quase sempre, sem que abram a boca, seus nomes, o
que fazem, de onde são.
Sei
como fazem sexo, o que gostam de comer, que vida tiveram. Às vezes
consigo saber até que vida terão. Mas nem sempre sei onde os vi
pela primeira vez. Talvez aí resida o álibi do porteiro na defesa
de sua sanidade, de sua vigília, álibi fornecido por meu
desconhecimento do momento em que travei conhecimento com meus
amigos.
Eles
- os misteriosos seres - vêm todo dia a minha casa. Com alguns faço
sexo, com outros converso, com alguns outros choro, uns poucos
conforto, por muitos sou confortada. Às vezes ocorrem brigas, a
maioria sem motivo. Todos me preparam lautas refeições e eu devoro
a comida como se estivesse prestes a viver meses de penúria. E mesmo
assim não engordo. Sou magra, muito magra.
Faço
sexo sem proteção e não engravido nem adoeço. Talvez sejam mesmo
pessoas imaginárias, comida imaginária, sexo imaginário.
Nunca
se despedem de mim. Sempre esperam que eu adormeça e vão embora sem
que eu perceba. No dia seguinte acordo, lembro-me da visita mas, como
as obrigações são um fato, tomo banho e vou para o trabalho como
se nada houvesse acontecido.
Ninguém
jamais soube disso até este momento. O porteiro me olha com
estranheza sempre que pergunto sobre alguém que tenha chegado para
me ver mas, simplório que é, não faz questão de tentar entender o
que me ocorre. E assim vou vivendo. Simplório o porteiro? Me é mais
confortável pensar assim.
Às
vezes é muito bom ter a chance desses delírios, desses sonhos
despertos. Outras vezes é assustador. Por causa da violência de
certos visitantes? Também. Mas sobretudo pela angústia de jamais
saber qual é a verdade, de quem é o delírio, se há o delírio.
A
visita de ontem foi muito boa. Tem os mesmos 33 anos que eu. Mais:
nasceu no mesmo dia e no mesmo horário em que vim ao mundo. Não é
a primeira vez que me procura. Às vezes some por longos períodos,
mas quando resolve aparecer - ou será que eu resolvo fazer com que
apareça? - sinto uma imensa felicidade.
Sempre
que vem conversamos, fazemos sexo e, quase no fim da madrugada,
jantamos. Ele cozinha divinamente e, inevitavelmente, me prepara
algum tipo de massa. Sabe que adoro massas. Gostaria que um dia ele
ficasse comigo até o amanhecer, mas isso nunca aconteceu.
Talvez
seja mesmo um delírio. Às vezes me chateio com essa possibilidade,
mas outras vezes me alegro. E a possibilidade da loucura acaba sendo
compensadora.
Mônica
Ribeiro, ou Mô Ribeiro,
é mineira de Belo Horizonte. Arquiteta de formação, descobriu-se
poeta por insistência do inconsciente. Participou da antologia É
Urgente o Amor, Edições
Vieira da Silva,
Portugal, e também da Antologia Ruínas,
da Editora Patuá.
Foi publicada pelas revistas Caliban,
Germina,
Literatura & Fechadura, Mallarmargens e Revista de Ouro. Irá publicar seu primeiro livros de poemas, Paganíssima Trindade, pela Editora Penalux. Veio
ao mundo em 1971 e deu trabalho para vir à tona: o parto foi de
fórceps. A escrita, ao contrário, vem nas contrações que dão à
luz seus poemas. Partos rápidos, mas não sem dor, e depois o
cuidado com a cria. Assim é sua escrita.
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Por
Adriane Garcia__
Segundo
Paul Ricoeur “a imagem-recordação está presente no
espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.”
Há um “pequeno milagre”, como chama Ricoeur, no
reconhecimento de algo que, não estando mais lá, é reconhecido
como tendo estado.
O
livro Fabulário (ed. Confraria do Vento), de Ana
Santos, divide-se em três partes: Museu mínimo,
Microcosmo e Fabulário. As três partes dialogam entre
si, dando unidade ao livro. Seu centro é a memória como motor para
a narrativa. Já em Museu mínimo fica clara a composição a partir
do memorial que a poeta traz, um museu da infância – esse lugar
privilegiado da memória; pois a infância se aproxima dos contos de
fada para o bem e para o mal naquilo que traz de tragédia e mágica.
É
pela memória que Ana Santos cria as imagens de Fabulário,
buscando um elo entre passado e presente. A forma encontra o tema, já
que as fábulas e os contos de fada trazem um arcabouço da memória
coletiva. Se a lembrança da poeta é uma experiência individual, ao
transformar essa lembrança em poesia ela seleciona aquilo que pode
dialogar com o outro, na sua também experiência individual;
experiências únicas, mas que se encontrando podem se reconhecer,
traduzindo valores, sentimentos e sensações universais. No poema
Retrato de família, por exemplo, a poeta escreve como quem
pinta. O poema é uma verdadeira composição e o leitor, ao ver o
retrato, pensa nos próprios retratos de família que poderia pintar.
Para além das descrições, na sexta estrofe, há um susto comum a
todas as pessoas – é a constatação da finitude, da perda:
“(Se
alguém escavasse
o
quintal da infância, acharia ossos
de
aves e cães, uns brinquedos
terrosos,
o corpo desfeito
de
um fantoche antigo.)
Para
além da beleza, versos exatos, Ana Santos trabalha com uma
variação criativa de poemas, tanto de elementos quanto de forma.
Sua memória, a princípio pessoal, é também memória crítica,
cultural, coletiva. Ao contrário do que poderia facilmente acontecer
com um livro cuja matéria prima é a lembrança (ser apenas
solitário), Fabulário é solidário, e lança o olhar que da
imagem interior vai ao outro. No poema Curtas, as fábulas
atualizam, como rápidas cenas cinematográficas, a dor da
maternidade confrontada com a morte: Maria canta/ e embala/ o
corpo quente. Do seu menino. // O corpo esfria: // Maria / canta
mais alto.”
Em
Fabulário,
encontramos seres e objetos comuns ao imaginário geral. Ana
Santos os reorganiza de maneira a dar sentido para os fragmentos,
afinal, não é possível acessar o passado completamente tal qual
tenha sido. A memória, sendo seletiva, está sempre sob suspeita, e
mesmo com aqueles que partilhamos as mesmas histórias, há
divergências na narrativa. É que a experiência é única e
intransferível e está subordinada ao tempo e às perspectivas de
cada um. Ainda que o caráter individual da lembrança seja inegável,
também é inegável que a memória se constrói em teia de relações
sociais. Fabulário traz histórias reais que perambularam
pelo mundo, fábulas que se parecem com o comum dos dias, mas que a
poesia eleva ao status de símbolo e metáfora. Alguns poemas falarão
da experiência pessoal da poeta, outros daquilo que ela viu, ouviu,
pois a própria pessoa é também uma composição de memórias. Há
um temor por perder aquilo que nos constitui primordialmente, o risco
do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte. Thomas Wolfe,
em O menino perdido, escreveu uma frase que vem a calhar:
“Tudo se perde a tal ponto que parece nunca ter acontecido... a
ponto de ser algo com que sonhamos em algum lugar”. Ana Santos
sabe e confessa: “Receio perder a memória. Escrevo por
precaução.”
HIBERNAÇÃO
A
tia-avó antiquíssima
fez
a brusca
revelação:
não
era eu
o
menino da foto,
tesouro
único
da
infância.
Era
Artur,
o
primo achado, uma noite,
calçando
patins solares,
na
fenda de um lago
congelado.
Os
mesmos olhos
grandes
e claros.
Não
há provas
da
criança que fui –
e
bem posso
ter
sido a outra.
Quem
sabe ainda
estou
dormindo
naquela
floresta azul?
É
verão em Varsóvia.
O
lago líquido
Guarda
meus olhos,
os
olhos
do
primo Artur.
ORAÇÃO
Meu
Deus,
que
exista algo
além
do vácuo
adivinhado.
Afinal,
tudo que amei
será
cinza, será pó, será
nada?
Estou
no exílio,
em
minha tenda
de
carne e ossos.
Corto
o cabelo,
uso
esta máscara
triste:
assim
me conhecem.
Guardo
as verdades
em
relicário –
o
que conto são lendas
assombrosas.
Vindo
de
onde vim, percorri
obscuros
caminhos.
Minha
pátria
não
tem nome,
meu
mapa
é
uma flecha em voo.
Eu
temo a hora
e
a forma
do
retorno.
Para
que nos matura
o
trabalho do tempo?
Para
que nos degrada?
Por
que esta alegria
gasta
em vão?
Que
a vida
resista
à vida,
polén
disperso
na
brisa.
Que
haja sentido
em
nossa
ilusão
dividida.
Amém.
TELEGRAMAS
I
FUGI
DE TREM ARRANHA-CÉUS COCA E PASTEL FELIZ DEMAIS ADEUS.
BRAÇOS
ABERTOS FEIJÃO NO FGO ROSÁRIO E VELA AMÉM.
II
CASA
INUNDADA PLEURA INFLAMADA SÓ PÃO MOFADO QUE DEUS ME AJUDE.
VOU
PARAR CHUVA VOU PLANTAR TRIGO LEVAR QUEM SABE EXTREMA-UNÇÃO.
III
MARIPOSA
MORRE LANTERNA CHINESA SAUDADE QUERO MORRER TAMBÉM.
NA
VITROLA TE RECUERDO AMANDA AINDA VIVO NÃO SOU MANUEL.
IV
LIÇÕES
TERRÍVEIS SINTAXE ÁLGEBRA NOITE ANO NOVO ESTAREI AÍ.
SORTE
NAS PROVAS CHAMPANHA FOGOS MANDINGAS MIL.
V
ESTOU
EM HYDRA TOCANDO LIRA ENQUANTO ISSO VOCÊ NO INFERNO.
NÃO
SE PREOCUPE CARNE QUEIMADA MAS AH QUE BÁLSAMO NO PEITO.
***
Fabulário
Ana
Santos
Poesia
Confraria
do Vento
2019
Você também pode acessar essa resenha: OS LIVROS QUE EU LI
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Ana
Santos
nasceu em 1984, em Porto Alegre. É mestra e doutoranda em Estudos de
Literatura pela UFRGS. Em 2008, foi contemplada com a Bolsa Funarte
de Estímulo à Criação Artística para escrever O
que faltava ao peixe (Libretos),
livro de contos publicado em 2011 com edição financiada pelo
Fumproarte.
Em 2017, estreou na poesia com a coletânea Móbile
(Patuá),
finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2018. Com
Fabulário (Confraria
do Vento,
2019), venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2017,
na categoria Poesia.
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Adriane
Garcia
nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de
pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por
estudar sobre a desconstrução do Arraial
do Curral del Rei
e a construção da primeira cidade planejada da República, com
destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido
sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para
as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os
livros Fábulas
para adulto perder o sono
(vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura,
2013, ed. Biblioteca
do Paraná),
O
nome do mundo (ed.
Armazém da Cultura,
2014), Só,
com peixes
(Ed. Confraria
do Vento,
2015), Garrafas
ao mar
(ed. Penalux,
2018).